quinta-feira, 19 de julho de 2012

Baltasar Garzón: a Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma idosa desrespeitada e longe da aposentadoria

Texto de Clarinha Glock
19/07/2012

Ao completar 65 anos em 2013, a Declaração Universal dos Direitos Humanos deverá ser aposentada? Afinal, em tempos de crise, a idade da aposentadoria está dilatando em muitos países para os 70 anos. A pergunta retórica foi lançada pelo juiz espanhol Baltasar Garzón em sua conferência intitulada "Direitos Humanos, Desenvolvimento e Criminalidade Global", proferida em 17 de julho em Porto Alegre, no sul do Brasil. Garzón viajou ao Estado do Rio Grande do Sul para ser testemunha do lançamento da Comissão Estadual da Verdade - na ocasião, o governador do Estado, Tarso Genro, assinou o decreto que instituiu um grupo formado por representantes da sociedade civil que vão analisar os documentos referentes ao período da ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985 e subsidiar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instituída em maio de 2012.

Conhecido por sua luta em defesa dos direitos humanos, Garzón foi responsável pela ordem de prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998. Em 2012, teve sua licença cassada pela Corte Suprema espanhola, sob o argumento de que havia autorizado escutas ilegais. Garzón ousou investigar o desaparecimento das vítimas do ditador Francisco Franco. Pois a resposta do magistrado a sua própria pergunta não poderia ser outra: a Declaração Universal dos Direitos Humanos é mais necessária do que nunca. Entretanto, é provavelmente a norma mais infringida da História da humanidade. "Isso me faz pensar qual nossa função como defensores de direitos humanos. Em muitos países, somos considerados uma praga, perigosos, somos acompanhados pelos serviços de inteligência só por exigir o cumprimento da Declaração e suas garantias", afirmou. "Sempre pensei que a maior garantia era não quebrantar os limites deste Estado de Direito".

Mas as contradições da defesa do Direito têm se tornado mais evidentes. Citou como exemplo, na última década: depois do ataque às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, foi anunciado o crescimento do terrorismo internacional. "Isso foi usado para legitimar a democracia ocidental e proteger do que não sabemos bem o que é. E como se luta contra o terror? Ocultando algo que hoje se sabe inadequado, que é a importância de se analisar as causas profundas deste fenômeno", insistiu o magistrado.

Garzón lembrou que os mesmos países que se manifestam pela defesa dos direitos humanos consentem a violação sistemática desses direitos em zonas em que são beneficiados economicamente. E reflete: "As denúncias sobre os genocídios e as guerras nunca são acompanhadas dos aspectos econômicos de base que os geraram".

O juiz relatou uma situação muito comum: não sabia o que era Coltan, até que sua mulher explicou que se trata de um mineral sem o qual aparelhos eletrônicos como os telefones celulares jamais existiriam - daí a importância estratégica deste mineral que é extraído de países como o Congo. "Em 2004 um relatório do FMI dizia que Uganda conseguiu eliminar sua dívida externa. Quase simultaneamente, um outro relatório falava que 32 países, a maioria do Primeiro Mundo, foram denunciados por desenvolver, desde Uganda, atividades relacionadas com a extração da Coltan em áreas onde estava acontecendo o massacre de milhões de pessoas".

Portanto, concluiu Garzón, é preciso superar a hipocrisia na defesa dos Direitos Humanos. O magistrado defende que essa luta deve ser constante, e não só no âmbito da Justiça Penal, que é um último recurso, mas no das empresas, com a exigência de controle sobre a obtenção de seus recursos e dos que deles se beneficiam. "Ao investigar de onde vêm as matérias-primas das empresas de esporte e alta costura que têm lojas na 5ª Avenida em Nova Iorque, talvez muitos se surpreendessem ao saber que são derivadas de trabalho escravo na Índia ou na China, ou de trabalho sem mínimos direitos garantidos. Estas empresas não fazem esforço para saber de onde vêm as matérias-primas. E aí os promotores e juízes têm um papel importante", acredita.

Outro exemplo: em seu país, acrescentou, só recentemente aconteceu o primeiro processo por delitos de uma instituição bancária. "Era chamativo que não havia um só processo criminal contra aqueles que provocaram esta crise econômica. Onde se encontra, então, a verdadeira proteção aos direitos humanos consentindo que os bancos e o sistema financeiro internacional não sejam sequer molestados? As explicações sobre a crise são tão técnicas que ninguém entende, nem se esforça por explicar, e nos dão a receita de que os mesmos que a provocaram é que vão solucioná-la", indignou-se Garzón.

Os jovens - que ele um dia achou estavam adormecidos - manifestaram esta indignação com movimentos de ocupação. Garzón elogiou os protestos dos universitários no México e no Chile e afirmou: "É um avanço na transparência, na participação e na exigência de responsabilidade".

Sobre as comissões em busca da verdade que o governo brasileiro agora está implantando, Garzón reiterou: "Aqueles que com sua omissão dizem que há coisas mais importantes do que recuperar a memória não se dão conta de que esse passado só se reconhece como oficialmente sucedido quando acontece a reconstituição da verdade democrática de um povo". E acrescentou: "Meu país sofreu uma ditadura durante 40 anos; e 70 anos depois não é capaz de enfrentar sua história". O magistrado diz que sua cassação, mais do que covardia, é reflexo do medo dos mais dos milhares de desaparecidos durante e depois da guerra civil espanhola, lembrando que, entre 1937 e 1951, cerca de 30 mil crianças foram sequestradas e entregues a outras famílias, e o único pecado de seus pais foi ser republicano. Sua expectativa é de que a Espanha e outros países consigam fazer o que o Brasil está fazendo: estabelecer mecanismos de memória e verdade, senão de Justiça, para reconciliar o povo com seu passado, com nomes e sobrenomes.