quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Chineza se foi...


"Claro que todas esquinas,
todas praças, o povo em geral, de rua
ainda continua na sua condição.
seja qualquer uma,
mas sempre
sonhando, talvez
com um futuro,
muitas vezes, dramático,
muitas vezes, feliz,
mas infelismente,
ainda há muito para
conquistar, e construir"

(Chineza)

Esta foi a última mensagem que recebi de Chineza. Foi escrita com sua própria letra, numa folha rasgada de caderno, e entregue a mim por Manoel, que durante um tempo trabalhou como “oficineiro da escrita” do Jornal Boca de Rua. Chineza era Marko Khan Su Gria, seu nome indígena.
Chineza escrevia com a alma, e se sua alma era de fato batalhadora e brilhante, continha uma tristeza profunda também.
Durante dias esta mensagem ficou no meu mural, me lembrando do carinho de Chineza e de outras pessoas com quem trabalhei no jornal Boca de Rua. Tirei do quadro de avisos ontem à noite. Hoje à tarde, 20 de agosto de 2008, recebi a notícia da morte de Chineza. Dizem que foi por tuberculose. Era HIV positivo. Pegou o frio da rua neste inverno chuvoso, percorreu o mesmo ciclo de outros tantos moradores de rua: foi para o hospital, saiu, voltou para o hospital, morreu ali. Antes de morrer, ainda disse que queria ir embora desta vida como suas amigas - na rua mesmo. Ela se referia, entre tantas, a Barbie, amiga que morreu alguns meses antes, e que também participou da equipe do jornal.


Chineza era diferente, porque sua alma gritava em palavras que ela mesma escrevia, sem ajuda de ninguém. Era meio índio, rejeitado pela tribo no passado por sua homossexualidade. Volta e meia podia-se encontrá-la machucada por ter apanhado sem motivo algum, ou porque estava simplesmente passando na rua, e parecia suspeita. Ou porque estava sentada num canto onde não era bem-vinda. Chineza sofreu todos os preconceitos que a ignorância humana pode permitir. Foi alvo de todos os estereótipos possíveis em uma só pessoa: pobre, homossexual, morador de rua, índio, drogado, aidético. E enfrentava isso tudo com tanta dignidade e sensibilidade, que envergonharia os algozes da moral alheia. Mas lhe doía muito esse enfrentamento diário.


Não era santa, é verdade. Era gente. Numa das últimas vezes que a vi estava no Gapa/RS apresentando um vídeo em que interpretou a mãe de um jovem atormentado pelo abandono e violência no lar. No making of, Chineza conta sua própria história. Este talento vivia sob pressão e depressão.
Outro dia, de relance, emparelhei por acaso o carro numa sinaleira com uma Chineza estaqueada na calçada, amortecida provavelmente pelo álcool, que a ajudava a amenizar tantas dores e lhe trazia outras. Ficou horas parada olhando o nada, uma cena que contrastava com a vida interna que dava às palavras nas reuniões do Boca de Rua, do Gapa, das oficinas da Casa de Convivência. Chineza vai fazer falta...talvez não tenha percebido o quanto era importante para tanta gente com sua presença nas reuniões, nos vídeos, nas discussões, na rua, na vida.