quinta-feira, 10 de abril de 2008

Sobre seres humanos e bichos

Em uma das reuniões de que participei outro dia, em que se discutia Integridade – esse sentimento que não se explica, se tem ou não -, veio à tona o tema da proibição das carroças nas ruas de Porto Alegre. A justificativa dos defensores da proibição é proteger os cavalos dos maus-tratos. E seguiu-se uma longa discussão sobre quem são os donos dos cavalos que puxam carroça, por que agem do jeito que agem.
Em vez de proibir, argumentei que, se as autoridades e a sociedade em geral se colocarem no lugar dos donos das carroças, abrirem um canal de diálogo, oferecerem alternativas a serem construídas em conjunto com estas pessoas, aí, sim, pode-se avançar nesta discussão. O que me remexe o estômago é que a mesma preocupação não se estende para as pessoas que estão puxando os carrinhos com os próprios braços. Sob o sol escaldante, sob a chuva, com os filhos às vezes na carroça, estas pessoas atrapalham o trânsito, sim, incomodam a vista. Mas não se pode fingir que elas não fazem parte da mesma sociedade, e que a gente não tem nada a ver com isso. A gente tem. E foi assim, pensando em Integridade e nestes donos de carroças, que me veio à cabeça esta história sobre gente e bichos.

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A história de Borracha

Os textos sobre a minha experiência com os moradores de rua do jornal Boca de Rua estão neste blog como uma espécie de confissão. Talvez eu não tenha noção ainda do nível de aprendizado que tive com eles. Mas esta história das carroças, de homens puxando cargas, em vez de bichos; de gente jovem morrendo em vida – ou superando a morte com dignidade e integridade - me remete a minha própria história.

Meu pai tem um olho que, como diz a música de Chico Buarque, “tem um olho sempre a boiar, e outro que agita” porque recebeu um coice, quando menino, de um cavalo chamado Borracha. Julio (meu pai) buscou na memória de sua infância como o bicho ganhou este nome – ao subir as lombas da cidade, puxando a carroça de ferro-velho de meu avô Pedro, o cavalo se esticava tanto, mas tanto, que parecia ser feito de borracha.
A família era pobre, e se virava para se manter economicamente. A religião era o ponto de apoio mais forte, e a perseverança de minha avó Berta o pilar que sustentava a todos. Comprar e vender ferro-velho era então uma profissão tão digna e necessária quanto a reciclagem, isso que naquela época nem se tinha noção dos danos que o meio ambiente – e o ser humano, por conseqüência – viriam a sofrer.
Pois teve um dia que o vô adoeceu. Borracha teve de ser vendido para pagar as contas. E os meninos (Julio e José, os mais velhos), tiveram que trabalhar sozinhos para manter o menorzinho Luiz alimentado, e ajudar a trazer dinheiro para a casa.
Foi vendendo cabides que eles chegaram à faculdade de Medicina. Se revezaram nas festas de formatura pra ver quem usaria o sapato sem furo, a roupa menos puída. Conquistaram diplomas, um nível melhor de vida, criaram filhos e netos com a mesma dignidade e integridade de Pedro e seu cavalo Borracha.



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