quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Histórias do Boca de Rua 5 - Alca


André Luis Cardoso de Araújo, o Alca
(1974-2005)

O apelido surgiu muito antes da sigla do livre comércio. Conheci André Luis Cardoso de Araújo, o Alca, por uma reportagem do jornal Zero Hora sobre a Turma dos Cachorrinhos – grupo que havia sido alfabetizado na Praça do Rosário pela professora Deirdre Bicca. Na reportagem feita pela jornalista Eliane Brum, Alca dizia que o sonho dele era ter uma casa, e não morreria antes disso.
Quando eu e Rosina Duarte começamos a trabalhar com as pessoas da Praça do Rosário a idéia de fazer um jornal que fosse a voz deles, Alca sempre era citado. Parecia uma figura mítica, fazia parte das histórias dos moradores de rua. Era amigo do Mercedez, do Bocão, do Clóvis. Quem não o conhecia pessoalmente, pelo menos tinha ouvido falar dele.

Ele se integrou à equipe do Boca de Rua quando já estávamos trabalhando no Parque Redenção, ao lado do Auditório Araújo Vianna. Os encontros aconteciam aos sábados, a partir das 15h. Com aquele vozeirão e um sorriso largo, Alca impunha respeito e simpatia. Mais do que isso, conseguia expressar com emoção e objetividade, em frases poéticas até, o que os outros sentiam e tentavam organizar em palavras.

Alca tinha uma madrinha – sua protetora e incentivadora, Mariléia -, que fomos conhecendo aos poucos, pelas histórias que ele contava, assim como Tonica, mãe de Aninha, de quem ele sempre falava com carinho. Delas, soubemos depois, ele tinha recebido ajuda e incentivos para estudar e se formar em cursos como o de cabelereiro. Tive o privilégio de ser convidada pra esta formatura e ainda guardo as fotos que fiz dele, sorridente, feliz, na festa realizada depois numa pizzaria. Era formado também nos cursos de padeiro e confeiteiro - fez mais de uma vez o bolo da festa de fim de ano do Boca de Rua. Lembro do bolo de frutas, delicioso.

Como havia prometido na reportagem da Zero Hora, Alca havia realmente conseguido conquistar sua casa, que ficava na avenida Bento Gonçalves. Era, portanto, um dos poucos do grupo que tinha um endereço fixo de moradia própria, e participava com assiduidade e interesse de grupos como Gapa, Nuances, além de conferências e seminários sobre os direitos dos moradores de rua, das crianças e adolescentes em situação de risco, sobre HIV/Aids.

Foi criado junto com outras crianças órfãs. Havia sido abandonado pelo pai, e era muito agradecido pela instituição que o acolheu. Andava sempre cercado de crianças. Ele dizia que queria fazer algo por elas. Também por isso acabou se tornando uma espécie de monitor do Boquinha (suplemento infanto-juvenil do Boca de Rua).

Alca tinha fome de aprender. Era meio cabeça-dura, teimoso, aparentemente agressivo, mas ouvia e absorvia avidamente tudo o que se falasse para ele.

E que dom ele tinha! Quem ouvia seus discursos, nas oficinas e conferências, ficava encantado. O domínio sobre as palavras, seja contando a história de sua vida, ou colocando-se como porta-voz das histórias dos outros, aparecia também na escrita. Podia não ter um português corretíssimo, mas entre as “heranças” que Alca deixou ficaram textos, crônicas e poemas registrados à mão em páginas e cadernos inteiros. É praticamente um livro de memórias pronto, esperando editor para ser publicado.


HIV positivo, era o exemplo de como era possível conviver bem com a doença, tomando os remédios e fazendo exames periódicos.

Por isso, quando o marido de Mariléia, sua madrinha, me ligou no dia 2 de junho de 2005 para avisar que Alca havia morrido, a primeira sensação foi de incredulidade.

“O Alca? Não pode! Ele tomava remédios, tinha casa, tinha sonhos... (pergunte a um morador de rua se ele tem sonhos – a maioria não consegue descrever nenhum), era membro ativo do Gapa... ele, não!”

Era o último que poderíamos imaginar perder assim... a descrição, feita mais tarde pelos próprios amigos, de como ele morreu, nos faz crer que poderia ter sido uma overdose, ou uma reação agravada pelo uso de antibióticos fortes para curar uma pneumonia (uma doença oportunista da Aids). Nunca tivemos certeza, e isso não era importante no momento, embora sua morte tenha suscitado reuniões depois, com o grupo, para discutir estes temas.

Pouco tempo antes, havia corrido um boato entre nós de que outro integrante, Neri Martins Carvalho, estava muito doente. Ele não aparecia mais nas reuniões e, quando um participante do Boca trouxe a notícia de que Neri tinha morrido, começamos uma busca pelos hospitais e por familiares para confirmar a informação. Passou uma ou duas semanas e Neri reapareceu. Magro, abatido, mas vivo.

Por isso, quando tomei coragem e liguei finalmente para Rosina para avisá-la da morte de Alca, lembro de ter dito:

- Tenho uma notícia ruim para te dar.
- O Neri morreu? – perguntou Rosina.
- Não, foi Alca.

No enterro de Alca, estavam lá os amigos conquistados nas várias fases da vida.

Alca, André ou Andréia, como era seu nome de guerra, deixou saudades, muitas saudades.

Gosto de pensar nele como uma energia ambulante, contagiante, de força, de luta e de perseverança pela vida. Como um pássaro livre, que sobrevoa nossas cabeças com suas asas poderosas, indo longe pra buscar outros mundos onde agitar suas idéias.