quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Cidadania




"PÔ, para ser cidadão não é mole..."

(Tonico, agente da Redução de Danos)


Filmado em 2000, o documentário Redutores de Preconceitos mostra a realidade dos agentes do Programa de Redução de Danos para Usuários de Drogas Injetáveis. O programa implantado pela Prefeitura de Porto Alegre, infelizmente, perdeu muitos de seus agentes - por questões políticas, por falta de apoio, pela própria Aids.

O princípio da redução de danos para usuários de drogas era de que, enquanto a pessoa não conseguia se livrar da droga, pelo menos poderia evitar a Aids, a hepatite e outras doenças, evitando compartilhar seringas contaminadas pelo vírus HIV.

A fala de Tonico sobre cidadania encerra o documentário. Tonico vive, mas a maior parte dos entrevistados no documentário não está mais aí para dar seu depoimento.

Nestes oito anos, a droga também mudou - é o crack que está detonando mais com crianças e adultos.

Fica o registro da fala de Tonico para pensar o que é esta tal de cidadania.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Chineza se foi...


"Claro que todas esquinas,
todas praças, o povo em geral, de rua
ainda continua na sua condição.
seja qualquer uma,
mas sempre
sonhando, talvez
com um futuro,
muitas vezes, dramático,
muitas vezes, feliz,
mas infelismente,
ainda há muito para
conquistar, e construir"

(Chineza)

Esta foi a última mensagem que recebi de Chineza. Foi escrita com sua própria letra, numa folha rasgada de caderno, e entregue a mim por Manoel, que durante um tempo trabalhou como “oficineiro da escrita” do Jornal Boca de Rua. Chineza era Marko Khan Su Gria, seu nome indígena.
Chineza escrevia com a alma, e se sua alma era de fato batalhadora e brilhante, continha uma tristeza profunda também.
Durante dias esta mensagem ficou no meu mural, me lembrando do carinho de Chineza e de outras pessoas com quem trabalhei no jornal Boca de Rua. Tirei do quadro de avisos ontem à noite. Hoje à tarde, 20 de agosto de 2008, recebi a notícia da morte de Chineza. Dizem que foi por tuberculose. Era HIV positivo. Pegou o frio da rua neste inverno chuvoso, percorreu o mesmo ciclo de outros tantos moradores de rua: foi para o hospital, saiu, voltou para o hospital, morreu ali. Antes de morrer, ainda disse que queria ir embora desta vida como suas amigas - na rua mesmo. Ela se referia, entre tantas, a Barbie, amiga que morreu alguns meses antes, e que também participou da equipe do jornal.


Chineza era diferente, porque sua alma gritava em palavras que ela mesma escrevia, sem ajuda de ninguém. Era meio índio, rejeitado pela tribo no passado por sua homossexualidade. Volta e meia podia-se encontrá-la machucada por ter apanhado sem motivo algum, ou porque estava simplesmente passando na rua, e parecia suspeita. Ou porque estava sentada num canto onde não era bem-vinda. Chineza sofreu todos os preconceitos que a ignorância humana pode permitir. Foi alvo de todos os estereótipos possíveis em uma só pessoa: pobre, homossexual, morador de rua, índio, drogado, aidético. E enfrentava isso tudo com tanta dignidade e sensibilidade, que envergonharia os algozes da moral alheia. Mas lhe doía muito esse enfrentamento diário.


Não era santa, é verdade. Era gente. Numa das últimas vezes que a vi estava no Gapa/RS apresentando um vídeo em que interpretou a mãe de um jovem atormentado pelo abandono e violência no lar. No making of, Chineza conta sua própria história. Este talento vivia sob pressão e depressão.
Outro dia, de relance, emparelhei por acaso o carro numa sinaleira com uma Chineza estaqueada na calçada, amortecida provavelmente pelo álcool, que a ajudava a amenizar tantas dores e lhe trazia outras. Ficou horas parada olhando o nada, uma cena que contrastava com a vida interna que dava às palavras nas reuniões do Boca de Rua, do Gapa, das oficinas da Casa de Convivência. Chineza vai fazer falta...talvez não tenha percebido o quanto era importante para tanta gente com sua presença nas reuniões, nos vídeos, nas discussões, na rua, na vida.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Histórias que se cruzam ao acaso




Viajar sozinho tem um lado muito bom, que é o de prestar mais atenção nos personagens da vida real que cruzam pelo nosso caminho. Um cumprimento aqui, uma curiosidade ali, um sorriso, e pronto: a gente abre espaço para conhecer outras pessoas e realidades, e tornar os passeios solitários uma rica experiência, cheia de histórias para contar. Foi assim, viajando sozinha entre Belo Horizonte, Ouro Preto e Mariana, em Minas Gerais, que conheci Seu Damião e Fábio. Era um dia de folga de um congresso em BH, em maio deste ano, e aproveitei para desvendar um pouco mais do Estado.
Damião Amaro Lopes tem cabelos brancos e sorriso largo. Para quem não o conhece, vai logo se apresentando: “Sou o homem das sete profissões e das 21 necessidades”. Aos 74 anos, completados agora, em 6 de junho de 2008, ele é um informal contador de histórias da Estação Cidadania de Ouro Preto. Quer pegar o Trem da Vale entre as históricas Outro Preto e Mariana? Pois ninguém cruza o lugar sem deparar com seu Damião. Quando não está contando histórias, está tocando seu acordeão para os visitantes, ou improvisando sons com um violão de cabaça.
As sete profissões não são bem sete, nem as 21 necessidades, cuja lista varia conforme a memória e vontade de ouvir do freguês. Mas quem se importa? Um banquinho improvisado no Vagão Sonoro Ambiental da estação de Ouro Preto serve de palco para seu Damião. Ao lado de Fábio Costa Carvalho, estudante de Música que trabalha como monitor neste vagão que nunca sai do lugar, ele desafia quem tenha melhor lábia.
Conta que nasceu em Juazeiro do Padre Cícero, no Ceará, mas está desde 1955 em Minas. Foi agricultor em Cariri; depois, ferreiro com carteira assinada; mecânico de montagem em uma fábrica de tecido; analista químico, com registro e tudo, e atua como profissional de fotografia há 22 anos. “Conheço fotografia da hora que nasce até quando termina”, tenta explicar. Registra de tudo: de casamentos a fotos da indústria de alumínio. E segue a lista: formado em restauração na Fundação de Artes de Ouro Preto, ajudou a recuperar imagens de telas das igrejas. E, finalmente, artista plástico - garante que tem trabalhos seus enfeitando casas no Exterior.
Fábio já se acostumou com a figura falante no Vagão Sonoro Ambiental onde, de canos e restos de material de trens, se tira sons e música. Ele próprio, que nasceu em Miraí, no interior, ainda mal conhece Ouro Preto. Veio tentar a sorte e o estudo e torce para que volte a obrigatoriedade das aulas de música nas escolas para que tenha mais campo de trabalho no futuro. Enquanto isso, fica ali para receber as crianças e os adultos curiosos que vistam a estação. Seu Damião se acerca quase toda a semana, para se inspirar e inspirar os outros.
O passeio do Trem da Vale custa R$ 18 (quase o preço do ônibus de BH para Ouro Preto) e vale a pena pela paisagem do caminho. Quem quiser saber mais sobre o passeio pode acessar o site http://www.tremdavale.com.br/. É uma opção gostosa para quem estiver de passagem por BH. Num mesmo dia, dá para visitar Ouro Preto, pegar o trem, passear por Mariana, e voltar para a capital mineira.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Sobre seres humanos e bichos

Em uma das reuniões de que participei outro dia, em que se discutia Integridade – esse sentimento que não se explica, se tem ou não -, veio à tona o tema da proibição das carroças nas ruas de Porto Alegre. A justificativa dos defensores da proibição é proteger os cavalos dos maus-tratos. E seguiu-se uma longa discussão sobre quem são os donos dos cavalos que puxam carroça, por que agem do jeito que agem.
Em vez de proibir, argumentei que, se as autoridades e a sociedade em geral se colocarem no lugar dos donos das carroças, abrirem um canal de diálogo, oferecerem alternativas a serem construídas em conjunto com estas pessoas, aí, sim, pode-se avançar nesta discussão. O que me remexe o estômago é que a mesma preocupação não se estende para as pessoas que estão puxando os carrinhos com os próprios braços. Sob o sol escaldante, sob a chuva, com os filhos às vezes na carroça, estas pessoas atrapalham o trânsito, sim, incomodam a vista. Mas não se pode fingir que elas não fazem parte da mesma sociedade, e que a gente não tem nada a ver com isso. A gente tem. E foi assim, pensando em Integridade e nestes donos de carroças, que me veio à cabeça esta história sobre gente e bichos.

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A história de Borracha

Os textos sobre a minha experiência com os moradores de rua do jornal Boca de Rua estão neste blog como uma espécie de confissão. Talvez eu não tenha noção ainda do nível de aprendizado que tive com eles. Mas esta história das carroças, de homens puxando cargas, em vez de bichos; de gente jovem morrendo em vida – ou superando a morte com dignidade e integridade - me remete a minha própria história.

Meu pai tem um olho que, como diz a música de Chico Buarque, “tem um olho sempre a boiar, e outro que agita” porque recebeu um coice, quando menino, de um cavalo chamado Borracha. Julio (meu pai) buscou na memória de sua infância como o bicho ganhou este nome – ao subir as lombas da cidade, puxando a carroça de ferro-velho de meu avô Pedro, o cavalo se esticava tanto, mas tanto, que parecia ser feito de borracha.
A família era pobre, e se virava para se manter economicamente. A religião era o ponto de apoio mais forte, e a perseverança de minha avó Berta o pilar que sustentava a todos. Comprar e vender ferro-velho era então uma profissão tão digna e necessária quanto a reciclagem, isso que naquela época nem se tinha noção dos danos que o meio ambiente – e o ser humano, por conseqüência – viriam a sofrer.
Pois teve um dia que o vô adoeceu. Borracha teve de ser vendido para pagar as contas. E os meninos (Julio e José, os mais velhos), tiveram que trabalhar sozinhos para manter o menorzinho Luiz alimentado, e ajudar a trazer dinheiro para a casa.
Foi vendendo cabides que eles chegaram à faculdade de Medicina. Se revezaram nas festas de formatura pra ver quem usaria o sapato sem furo, a roupa menos puída. Conquistaram diplomas, um nível melhor de vida, criaram filhos e netos com a mesma dignidade e integridade de Pedro e seu cavalo Borracha.



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sábado, 9 de fevereiro de 2008

Histórias do Boca de Rua - oficina de Serigrafia





Em 2003, foi realizada uma experiência de oficina de serigrafia com alguns integrantes do jornal Boca de Rua. As camisetas com o logotipo do jornal foram vendidas durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.

Histórias do Boca de Rua 6 - Neri



Neri, da percussão à serigrafia

Neri Martins Carvalho poderia ter sido músico, talvez. Tirava sons incríveis da boca imitando instrumentos de percussão e tinha prazer em cantar – de certa forma, foi ele quem primeiro incorporou o Rap do Mercedez à lista das músicas cantadas pelo grupo de hip hop formado por integrantes do jornal Boca de Rua. Estava no primeiro grupo de rap formado pelo Boca e se apresentou mais de uma vez representando a turma (no vídeo do You Tube ele aparece com os amigos do Boca de Rua: Alex, Gilmar e Alexandre).
Tinha tino para negócios. Era um dos melhores vendedores do jornal, porque possuía uma lábia para convencer seus leitores a comprarem seus exemplares como ninguém. Foi ele quem sugeriu que as camisetas e outros objetos com o símbolo do Boca de Rua virassem uma grife. A idéia não foi levada adiante, mas o interesse pela marca era evidente.
O símbolo do Boca – uma bocarra vermelha escancarada e o nome do jornal entre dois símbolos de igualdade – havia sido criado por Riquinho, um ex-integrante do jornal. Foi estampado em camisetas mais de uma vez. Na primeira delas, em camisetas brancas doadas para a ONG Alice para fazer os uniformes do grupo usados nas palestras, conferências e em outros encontros em que integrantes do Boca estavam presentes vendendo o jornal ou falando sobre o trabalho.
As primeiras camisetas foram entregues para os integrantes do Boca de Rua com o compromisso de que eles mesmos as guardassem. Mas na rua, ou parando em casas de passagem, camisetas se perdem, são trocadas por outros artigos de necessidade mais imediata, ou são roubadas.
No 1º Fórum Social Mundial de que participaram, em 2001, eu levava estas camisetas para casa, lavava (o grupo era pequeno, eram umas quatro pessoas, no máximo) e trazia no dia seguinte, limpas e passadas, para que as colocassem de novo. Era o uniforme deles – tinham de estar apresentáveis, eu pensava. E na rua não tinham jeito de fazer isso de um dia para o outro.
A grife quase vingou. Um instrutor de serigrafia que dava aulas para um grupo de garotos da Febem, Edinilson, topou fazer uma experiência com o Boca de Rua. A idéia era usar a serigrafia, que também utiliza elementos da comunicação, como outra possibilidade de geração de renda. Se os integrantes do Boca de Rua fizessem as próprias camisetas do uniforme e outras roupas e cartazes que eventualmente poderiam vender, estariam não só ocupando o tempo ocioso, como se especializando num outro trabalho, além do jornal, que lhes afastaria mais tempo de drogas e da violência das ruas. Esta era a proposta.
O instrutor de serigrafia topou o desafio. Era preciso levar a turma de interessados com pulso firme – eles iriam lidar com tinta, solvente, precisavam ter disciplina, freqüência. E estariam aprendendo algo novo.
As imagens do vídeo registrando esta experiência são emocionantes (uma delas está no You Tube - Neri aparece no final, carregando camisetas). Eles trabalharam em serigrafia, produziram suas próprias camisetas e as venderam durante o Fórum Social Mundial.
Vencida esta etapa, a seguinte era levar adiante a combinação do que fazer com o dinheiro da venda. Haviam combinado que os primeiros trocos seriam reinvestidos no projeto de serigrafia, para comprar mais tinta e dar continuidade ao trabalho.
No final do evento, praticamente todas as camisetas haviam sido vendidas. Foi um sucesso. Mas apenas dois deles retornaram com uma parte do dinheiro combinado para reinvestir no projeto. O grupo ainda não havia amadurecido para ir adiante nesta etapa. Precisavam de mais tempo.
O projeto da serigrafia não continuou. Um dos motivos, na época, foi porque o instrutor ficou desempregado e teve de buscar outras atividades. Trabalho voluntário seria pedir-lhe demais quando ele estava preocupado com a própria sobrevivência.
As telas com o desenho do logotipo do Boca de Rua estão guardadas na sede da Alice. Quem sabe um dia o sonho da grife proposto por Neri ainda vire realidade.

CENA 1

Neri e L., sua namorada, estavam no meu carro. Íamos para o Hospital Presidente Vargas ver o bebê do casal, que havia nascido com problemas. Como a mãe usava drogas e vivia na rua, havia ainda o risco de o casal perder a guarda da criança.
Só notei que uma viatura da polícia estava me dando sinal para parar quando ela chegou mais próximo do meu carro. Os policiais haviam visto Neri e L. maltrapilhos dentro do carro, e acharam que eu estava a perigo, sendo ameaçada por marginais. Parei o carro, mostrei a pilha de jornais que sempre carregava no porta-malas, expliquei o projeto, e disse que estava tudo bem, Neri e L. faziam parte da equipe. Ele riu muito do episódio. Estava acostumado com a discriminação. Eu não.


CENA 2

Neri fez parte das primeiras turmas do Boca de Rua que participaram do Fórum Social Mundial em Porto Alegre.
No 1º Fórum Social Mundial, os vendedores do Boca de Rua venderam a primeiríssima edição do jornal. O interesse do público era enorme, os elogios constantes aos textos que eles podiam afirmar com segurança que eram feitos por eles mesmos. Estavam todos satisfeitos, orgulhosos, felizes por terem ganhado uma boa quantia em dinheiro e terem sido valorizados e recebidos carinhosamente dentro do espaço de uma universidade (PUCRS) à qual eles nunca tinham tido acesso daquela forma. Não haviam esmolado. Tinham trabalhado, e muito.
No final do dia, eles mal se continham de alegria. Tinham vivido sob uma nova identidade de grupo, vestidos com a camiseta do Boca de Rua.
Eu os havia trazido de carro. No porta-malas, no estacionamento da PUCRS, haviam ficado os pertences que sempre carregam pela rua: camisetas que vestiam antes de pôr o uniforme, restos de comida, e a garrafinha com o loló, companheiro do dia-a-dia.
Terminado o trabalho do dia, recolhemos a banca improvisada em frente ao prédio 41 da PUCRS, e seguimos em direção ao estacionamento. Eles estavam distraídos, comemorando as vendas e discutindo o que iriam fazer com o dinheiro. Em determinado momento, olhei pra trás, e vi um bando de policiais da Brigada Militar nos seguindo.
Ninguém do Boca de Rua usava crachá de participante do Fórum, e nem nós havíamos pedido autorização para montar nossa banquinha para vender o jornal ali.
Os policiais talvez não compreendessem a importância do momento para o grupo. Os vendedores do Boca de Rua seriam humilhados se os guardas os parassem para pedir identidade e esclarecimento sobre quem eram, o que estavam fazendo ali e por que –aliás, como era de praxe quando estavam na rua. Seriam revistados porque eram um grupo “diferente” dos estudantes e estrangeiros que circulavam pelo local.
“Esqueci de uma coisa, vamos ter de voltar”, eu disse, com medo de que, se nos afastássemos muito do local onde estava o público do Fórum Social Mundial, e se os guardas fossem conosco até o estacionamento, ficaríamos longe das pessoas que poderiam nos dar apoio por estar ali. Pior: o dia dos felizes integrantes do Boca de Rua teria sido destruído pelo preconceito e pela humilhação de serem discriminados e vasculhados como suspeitos.
Deixei o grupo na frente do prédio 41, sem que eles tivessem notado o que estava acontecendo. E fui direto à sala de imprensa onde estava o fotógrafo Luiz Abreu, chefe da fotografia, e marido de Rosina Duarte, também jornalista do grupo. Abreu não titubeou quando soube do ocorrido. Dependurou a máquina fotográfica no pescoço e nos acompanhou até o estacionamento.
Nesse ínterim, Rosina se uniu a nós na comitiva. Com aquela super câmera de Abreu nos abrindo caminho, chegamos ao estacionamento, sãos e salvos. Conseguimos sobreviver a esta situação e chegamos a acreditar que um outro mundo realmente era possível, pelo menos enquanto a polícia não alcançasse os vendedores do Boca novamente.

CENA 3

Neri foi morrendo aos poucos. Foi definhando e deixando o sorriso maroto e bonito ficar banguela, resultado das brigas na rua. Passou um tempo sem vir às reuniões do Boca. Fugiu do hospital e morreu em 9 de junho de 2005, aos 23 anos de idade, exatamente uma semana depois de Alca. Descobrimos depois de sua morte que ele tinha família em Caxias do Sul e foi lá que o enterraram. Junho de 2005 foi o mês mais triste da história do Boca de Rua. Neri e Alca não estavam mais conosco.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Histórias do Boca de Rua - Alca e suas histórias



André tinha o dom da palavra. E deixou ela registrada em vídeos, no jornal Boca de Rua e em seus cadernos de anotações.

Histórias do Boca de Rua 5 - Alca


André Luis Cardoso de Araújo, o Alca
(1974-2005)

O apelido surgiu muito antes da sigla do livre comércio. Conheci André Luis Cardoso de Araújo, o Alca, por uma reportagem do jornal Zero Hora sobre a Turma dos Cachorrinhos – grupo que havia sido alfabetizado na Praça do Rosário pela professora Deirdre Bicca. Na reportagem feita pela jornalista Eliane Brum, Alca dizia que o sonho dele era ter uma casa, e não morreria antes disso.
Quando eu e Rosina Duarte começamos a trabalhar com as pessoas da Praça do Rosário a idéia de fazer um jornal que fosse a voz deles, Alca sempre era citado. Parecia uma figura mítica, fazia parte das histórias dos moradores de rua. Era amigo do Mercedez, do Bocão, do Clóvis. Quem não o conhecia pessoalmente, pelo menos tinha ouvido falar dele.

Ele se integrou à equipe do Boca de Rua quando já estávamos trabalhando no Parque Redenção, ao lado do Auditório Araújo Vianna. Os encontros aconteciam aos sábados, a partir das 15h. Com aquele vozeirão e um sorriso largo, Alca impunha respeito e simpatia. Mais do que isso, conseguia expressar com emoção e objetividade, em frases poéticas até, o que os outros sentiam e tentavam organizar em palavras.

Alca tinha uma madrinha – sua protetora e incentivadora, Mariléia -, que fomos conhecendo aos poucos, pelas histórias que ele contava, assim como Tonica, mãe de Aninha, de quem ele sempre falava com carinho. Delas, soubemos depois, ele tinha recebido ajuda e incentivos para estudar e se formar em cursos como o de cabelereiro. Tive o privilégio de ser convidada pra esta formatura e ainda guardo as fotos que fiz dele, sorridente, feliz, na festa realizada depois numa pizzaria. Era formado também nos cursos de padeiro e confeiteiro - fez mais de uma vez o bolo da festa de fim de ano do Boca de Rua. Lembro do bolo de frutas, delicioso.

Como havia prometido na reportagem da Zero Hora, Alca havia realmente conseguido conquistar sua casa, que ficava na avenida Bento Gonçalves. Era, portanto, um dos poucos do grupo que tinha um endereço fixo de moradia própria, e participava com assiduidade e interesse de grupos como Gapa, Nuances, além de conferências e seminários sobre os direitos dos moradores de rua, das crianças e adolescentes em situação de risco, sobre HIV/Aids.

Foi criado junto com outras crianças órfãs. Havia sido abandonado pelo pai, e era muito agradecido pela instituição que o acolheu. Andava sempre cercado de crianças. Ele dizia que queria fazer algo por elas. Também por isso acabou se tornando uma espécie de monitor do Boquinha (suplemento infanto-juvenil do Boca de Rua).

Alca tinha fome de aprender. Era meio cabeça-dura, teimoso, aparentemente agressivo, mas ouvia e absorvia avidamente tudo o que se falasse para ele.

E que dom ele tinha! Quem ouvia seus discursos, nas oficinas e conferências, ficava encantado. O domínio sobre as palavras, seja contando a história de sua vida, ou colocando-se como porta-voz das histórias dos outros, aparecia também na escrita. Podia não ter um português corretíssimo, mas entre as “heranças” que Alca deixou ficaram textos, crônicas e poemas registrados à mão em páginas e cadernos inteiros. É praticamente um livro de memórias pronto, esperando editor para ser publicado.


HIV positivo, era o exemplo de como era possível conviver bem com a doença, tomando os remédios e fazendo exames periódicos.

Por isso, quando o marido de Mariléia, sua madrinha, me ligou no dia 2 de junho de 2005 para avisar que Alca havia morrido, a primeira sensação foi de incredulidade.

“O Alca? Não pode! Ele tomava remédios, tinha casa, tinha sonhos... (pergunte a um morador de rua se ele tem sonhos – a maioria não consegue descrever nenhum), era membro ativo do Gapa... ele, não!”

Era o último que poderíamos imaginar perder assim... a descrição, feita mais tarde pelos próprios amigos, de como ele morreu, nos faz crer que poderia ter sido uma overdose, ou uma reação agravada pelo uso de antibióticos fortes para curar uma pneumonia (uma doença oportunista da Aids). Nunca tivemos certeza, e isso não era importante no momento, embora sua morte tenha suscitado reuniões depois, com o grupo, para discutir estes temas.

Pouco tempo antes, havia corrido um boato entre nós de que outro integrante, Neri Martins Carvalho, estava muito doente. Ele não aparecia mais nas reuniões e, quando um participante do Boca trouxe a notícia de que Neri tinha morrido, começamos uma busca pelos hospitais e por familiares para confirmar a informação. Passou uma ou duas semanas e Neri reapareceu. Magro, abatido, mas vivo.

Por isso, quando tomei coragem e liguei finalmente para Rosina para avisá-la da morte de Alca, lembro de ter dito:

- Tenho uma notícia ruim para te dar.
- O Neri morreu? – perguntou Rosina.
- Não, foi Alca.

No enterro de Alca, estavam lá os amigos conquistados nas várias fases da vida.

Alca, André ou Andréia, como era seu nome de guerra, deixou saudades, muitas saudades.

Gosto de pensar nele como uma energia ambulante, contagiante, de força, de luta e de perseverança pela vida. Como um pássaro livre, que sobrevoa nossas cabeças com suas asas poderosas, indo longe pra buscar outros mundos onde agitar suas idéias.