domingo, 30 de dezembro de 2007

Histórias do Boca de Rua 4 - Mercedez



Esse tal de Mercedez

Sempre que lembro de Luciano Felipe da Luz, o Mercedez que trabalhou no jornal Boca de Rua, a cena que me vem à cabeça é eu, ele e a jornalista Rosina Duarte no meu carro, cantando juntos a música "Aquarela" de Toquinho, e depois entrando rindo e abraçados no Hospital Psiquiátrico São Pedro. "Onde fica a Unidade de Desintoxicação de dependentes químicos?", perguntamos ao guarda que, sem entender o que duas branquelas de nariz longo e afilado e um negro reluzente e feliz faziam por ali, nos olhou meio constrangido.

Fugíamos do estereótipo dos pacientes do São Pedro. Mercedez estava com um macacão jeans claro, bem arrumado, cabelo e barba feitos, bem diferente do homem atirado no chão que havíamos conhecido... há quanto tempo? Talvez nem seis meses.

A aproximação dele conosco havia sido gradual. Ele ficava estirado junto a uma das paredes do Colégio Rosário, em Porto Alegre, na esquina próxima ao viaduto. Completamente "chapado" - geralmente de loló -, sujo e mal cheiroso. Naquela época, nos reuníamos com os integrantes do jornal Boca de Rua na Praça do Rosário, onde em 2000 o projeto começou.

Mercedez conhecia praticamente todos os integrantes do Boca de Rua que haviam pertencido à Turma dos Cachorrinhos – e eram chamados assim porque o cachorro-quente da carrocinha perto do colégio era famoso. Eles trabalhavam ali como guardadores de carros. Muitos haviam sido alfabetizados pela professora Deirdre Bicca, e ganharam notoriedade passageira quando foram entrevistados para o jornal Zero Hora.

Numa das tardes de trabalho, que acontecia sempre aos sábados, quando Mercedez já estava mais próximo do grupo, Bocão, ele e Neri ensaiavam uma percussão e um rap. Todos cantavam. Eu aproveitei que estava com o gravador, usado para treinar com eles as entrevistas feitas para o jornal, e comecei a gravar a cantoria.

Não lembro bem como começou, só lembro que, num determinado momento, Mercedez começou a cantar um rap que ele teria feito. Rosina, antenada, passou a anotar a letra. Ele ia criando a música, e ditou a letra do rap, palavra por palavra.

Esse momento tornou-se parte da história do Boca de Rua – quando Mercedez morreu, o jornal fez uma edição especial inteira sobre o amigo que partiu. E a letra do Rap do Mercedez estava lá, na íntegra. Neri, nosso rapper natural (também já falecido), acabou incorporando a música ao repertório do grupo de rap que foi criado tempos depois, sob a coordenação de Mário Pezão, numa oficina dentro do Projeto de Descentralização da Cultura da Prefeitura. E quando o grupo se apresentou pela primeira vez, Belo, Neri e Marcos cantaram o Rap do Mercedez. Pezão encarregou-se de lapidar, colocar ritmo. Tiano, atual coordenador do grupo Realidade de Rua – formado por alguns integrantes do Boca de Rua e outros que se aproximaram depois, no projeto do Gapa/RS - deu seu toque e aprimorou as apresentações do Rap do Mercedez.

Mercedez sempre volta para mim em cenas da memória muito nítidas. Na foto mais bonita que tirei dele, está de pé, ancorado no monumento da Praça do Rosário, com um blusão de lã e um olhar confiante.

Em outro momento, já mais frágil, recordo de um relato de Rosina sobre uma conversa que Mercedez puxou com ela nos primeiros tempos de aproximação com o grupo: “Quer ser minha mãe?”, perguntou. Ao que Rosina respondeu: “Mãe não posso ser, mas posso ser tua amiga”.

Ficamos mesmo amigas de Mercedez. A ponto de, após a visita ao Hospital São Pedro, ele ter insistido em nos levar para apresentar-nos à família e termos conhecido seus filhos algum tempo depois.

Aquele homenzarrão que provocava medo e pena das pessoas numa primeira impressão, tinha na verdade um coração enorme. Adorava os filhos, falava sempre deles, e seu sonho era reatar o contato com a família. Ajudava os amigos de rua como podia.

Para mim Mercedez revelou-se encantador. E não só pela música “Aquarela”, aprendida quando era criança no coral do abrigo Dom Bosco, mas pelo apreço que tinha por outro marco da infância: ele sempre quis ter uma flauta doce. Comprei a flauta para ele, mesmo sabendo do risco de perdê-la na rua. Na época, com o intuito de incentivar os integrantes a voltarem para os estudos e a guardar um pouco de suas histórias, demos para eles pastas de elásticos onde poderiam guardar seus documentos e material do colégio.

Foi na pasta azul que Mercedez colocou sua flauta, sua carteira de identidade e certidão de nascimento. E escreveu, na parte de dentro da capa: jornalista e jornaleiro. A pasta ficou guardada num armário dentro do Acolhimento Noturno – como muitos de seus amigos, era comum Mercedez perder a carteira de identidade ao dormir na rua. Guardar sua identidade, portanto, junto às coisas do Boca, era algo mais do que simbólico para ele e para nós.

Um dia, em uma das visitas para encontrá-lo no Acolhimento Noturno, tive um susto. No mural do abrigo, além do jornal Boca de Rua, estava lá uma foto minha e de Rosina com Mercedez – sempre que eu tirava fotos dos integrantes do Boca, costumava dar-lhes de lembrança, numa espécie de retorno da alma a seus donos. Nós havíamos sido incorporadas definitivamente a sua vida.

A última vez que o vi estava muito debilitado no Abrigo Marlene. Havia recém saído do hospital – sempre teve medo de ficar internado e havia fugido outras vezes, o que acabou agravando as complicações do HIV. Fraco, ainda muito doente, mal conseguia falar direito. Viajei no dia seguinte, a trabalho, e foi num canto do sertão do Brasil que fiquei sabendo pelo telefone da morte de Mercedez.

Para fazer a edição especial sobre ele levamos uma parte do grupo ao cemitério da Santa Casa. O grupo rezou, questionou um funcionário do cemitério por que não podiam colocar nem uma foto do Mercedez sobre sua cruz e escreveu uma das edições mais bonitas e tristes do jornal Boca de Rua. Mercedez estava morto, mas havia sobrevivido à indiferença das ruas. Sua história, pelo menos, foi registrada no jornal. E sua música, o rap, continua sendo cantada em todas as apresentações dos integrantes do Boca de Rua.